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Lei de Saúde Mental e As Garantias Dos Direitos Dos Cidadãos
Lei de Saúde Mental e As Garantias Dos Direitos Dos Cidadãos
Lei de Saúde Mental
e as
Garantias dos Direitos dos Cidadãos
A doença mental1 tal como a anomalia psíquica2 é
geralmente incompreendida, incómoda e marginalizada,
está rodeada de mitos e preconceitos, abrange vários
desvios, estados demenciais, personalidades anormais,
alterações afectivas, perturbações da consciência ou
devidas a doença e neuroses, enfim perturbações
intelectuais ou intelectivas ou perturbações volitivas e ainda perturbações mistas.
O doente mental tem direito à protecção assistencial e não perde os direitos de cidadania;
mantém, e devem ser‐lhe especialmente reconhecidos, o direito à humanidade no
tratamento, o direito à rigorosa e isenta avaliação clínico‐psiquiátrica, o direito ao juiz e ao
advogado, o direito à família, os direitos à não discriminação e de acesso aos melhores
cuidados de saúde mentais disponíveis.
1
Como já se disse, “nem sempre é fácil determinar … uma tal enfermidade; designadamente é indeterminável
(indefinível e indizível) a fronteira entre a anomalia psíquica e a idiossincrasia, a diferença, a originalidade, a
peculiaridade, a extravagância, a excentricidade ou bizarria, a extraordinaridade e até a genialidade”.
2
A anomalia psíquica, ou a perturbação da mente não se pode reconduzir à existência de comportamentos
dissidentes ou inadaptados nem decorre de divergências politicas, sociais, religiosas ou culturais profundas, mas
resulta de perturbações psiquiátricas de doenças do foro psíquico ou psicológico, muitas vezes produto do stress
social e da exclusão. E quais são no fundo as causas que podem alterar a capacidade de compreensão e decisão?
Quais os factores que podem influenciar a correcta percepção, a acção humana e a sua normal intencionalidade?
Deve preferir‐se um modelo assistencial novo3 predominantemente associativo, comunitário
e pessoal em contraposição ao tradicionalmente público, institucional ou hospitalar e deve
ser erradicado o modelo custodialista e coercitivo, apesar da Lei da Saúde Mental ter optado
por um modelo judiciário em detrimento de um modelo terapêutico4.
Ainda que se verifique qualquer transtorno psiquiátrico, ainda que grave, tal não torna
imediatamente admissível a privação ou a restrição de liberdade, sobretudo a quem não
ofereça real perigo para si ou para os outros5; não sendo tolerável qualquer tentativa de
“higiene ou homogeneização social”, de “super protecção familiar”, de “paternalismo
judiciário” ou de “fundamentalismo médico”. 6
O internamento compulsivo, na Lei da Saúde Mental, radica numa matriz garantística,
culmina num modelo misto de decisão sujeita a critérios médicos e judiciais; ou seja exige‐se
“um consenso entre médicos e juízes, fazendo depender o internamento da conjunção de dois
poderes e de dois juízes: por um lado, de uma decisão médica especializada, profunda em
conhecimentos técnicos e obrigada por uma deontologia profissional exigente; por outro
3
É necessário que a sociedade civil se capacite das suas responsabilidades e se organize de modo a proporcionar
ou facilitar o apoio psicossocial, a organizar planos integrados de reabilitação psicossocial, designadamente
desenvolvendo programas de apoio domiciliário, de cuidados de saúde ocasionais ou continuados e de formação
ou de emprego protegido, obviamente com a co-responsabilização, a disponibilização de meios humanos e a
comparticipação económico-financeira das instituições do Estado.
4
Devem instituir-se e prosseguir-se políticas especificas alternativas de reabilitação psicossocial e de integração
sócio-ocupacional-profissional, pois só assim se evitam ou podem tentar evitar as situações limite,
nomeadamente a intervenção do Estado no uso do seu ius imperii.
5
Ou, em linguagem jurídica, quando não afecte ou coloque em risco efectivo bens jurídicos fundamentais,
próprios ou alheios.
6
Como já foi dito “na realidade, é preciso que a sociedade resista às tentações, que são inúmeras, diversas e
antigas, muitas vezes até bem intencionadas, de homogeneização ou de uniformização social, eliminando os
comportamentos estranhos, os modos de vida incomuns e as reacções imprevisíveis. Lembremos, entre as não
diabolizadas, as tentações administrativas e policiais – em nome da segurança pública, contra a marginalidade e
a vadiagem -, as tentações políticas – em nome do interesse nacional ou colectivo, contra a dissidência -, as
tentações judiciais – em nome dos valores comunitários, contra a criminalidade e a toxicodependência -, as
tentações médicas – em nome da defesa da vida e da saúde, contra a doença e o suicídio.”
lado, de uma decisão judicial fundada em conhecimentos jurídicos e garantindo a aplicação
correcta da Constituição e da Lei”. 7
Com excepção do tutelar e do de urgência, só é possível o internamento compulsivo se se
tratar da única forma de garantir a submissão a tratamento e reunidos, cumulativamente, os
dois seguintes pressupostos: a) verificação de anomalia psíquica grave incapacitante que
afaste a normal capacidade de querer e de entender; e b) estabelecimento de um nexo de
causalidade entre o comportamento futuro previsível e seu grau de perigo para colocar em
risco concreto bens jurídicos fundamentais, de relevante valor, próprios ou alheios, de
natureza pessoal ou patrimonial.
E, nessa medida, a montante são reconhecidos direitos ao utente dos serviços de saúde
mental8; durante o processo ao internando9; a jusante ao internado10, e estabelecem‐se
regras a ter em conta na prestação dos cuidados de saúde mental11.
7
Não é de todo garantístico o dispositivo constitucional, ou melhor, o limite contido na alínea h) do nº 3 do artº
27º da nossa Lei Fundamental. Bem pelo contrário. Estabelece-se, no nº 1 do supracitado preceito que “todos têm
direito à liberdade e segurança” e, no nº 2, que “ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a
não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de
prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”. Tudo muito certo. Mas, depois, diz o legislador
constitucional que “exceptua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei
determinar...[no caso de] internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico
adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente”. Sem mais! Ou seja, o simples facto de
se ser portador de anomalia psíquica pode significar a privação de liberdade. Nada mais absurdo e ilegítimo.
Propomos, pois, a seguinte alteração à referida norma constitucional: “exceptua-se deste princípio a privação da
liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar...[no caso de] internamento de portador de anomalia
psíquica perigoso em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial
competente”. Assim como não seria de todo inapropriado, e até fortemente aconselhável, face aos perigos agora
constatados, estatuir também nova formulação para o artº 13º nº 2 da Constituição da República Portuguesa que
por ora refere que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou
isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções
políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”. Ou seja, para
obviar a quaisquer futuros abusos do legislador ordinário ou dos aplicadores do direito, passaria a estatuir-se que
“ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer
dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou
ideológicas, instrução, situação económica, condição social, doença mental ou orientação sexual”.
8
Sem prejuízo do previsto na Lei de Bases da Saúde, o utente dos serviços de saúde mental tem ainda o direito
de: a) ser informado, por forma adequada, dos seus direitos, bem como do plano terapêutico proposto e seus
efeitos previsíveis; b) receber tratamento e protecção, no respeito pela sua individualidade e dignidade; c) decidir
receber ou recusar as intervenções terapêuticas propostas, salvo quando for caso de internamento compulsivo ou
O internamento compulsivo, seja ele internamento de perigo ou tutelar, deve ser sempre
preterido quando se mostre viável a terapêutica consentida em ambulatório ou, no limite, o
tratamento compulsivo também em ambulatório ou o internamento consentido; e só pode
ser decidido com respeito pelos princípios da legalidade, da tipicidade, da necessidade, da
excepcionalidade, da adequação, da subsidiariedade, da proporcionalidade e da precaridade.
em situações de urgência em que a não intervenção criaria riscos comprovados para o próprio ou para terceiro; d)
não ser submetido a electroconvulsivoterapia sem o seu prévio consentimento escrito; e) aceitar ou recusar, nos
termos da legislação em vigor, a participação em investigações, ensaios clínicos ou actividades de formação; f)
usufruir de condições dignas de habitabilidade, higiene, alimentação, segurança, respeito e privacidade em
serviços de internamento e estruturas residenciais; g) comunicar com o exterior e ser visitado por familiares,
amigos e representantes legais, com as limitações decorrentes do funcionamento dos serviços e da natureza da
doença; h) receber justa remuneração pelas actividades e pelos serviços por ele prestados; i) receber apoio no
exercício dos direitos de reclamação e queixa.
9
O internando goza, em especial, do direito de: a) ser informado dos direitos que lhe assistem; b) estar presente
aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito, excepto se o seu estado de saúde o impedir; c) ser
ouvido pelo juiz sempre que possa ser tomada uma decisão que pessoalmente o afecte, excepto se o seu estado de
saúde tornar a audição inútil ou inviável; d) ser assistido por defensor, constituído ou nomeado, em todos os actos
processuais em que participar e ainda nos actos processuais que directamente lhe disserem respeito e em que não
esteja presente: e) oferecer provas e requerer as diligências que se lhe afigurem necessárias.
10
O internado, mantendo os direitos reconhecidos aos internados nos hospitais gerais, goza, em especial, do
direito de: a) ser informado e, sempre que necessário, esclarecido sobre os direitos que lhe assistem; b) ser
esclarecido sobre os motivos da privação da liberdade; c) ser assistido por defensor constituído ou nomeado,
podendo comunicar em privado com este; d) recorrer da decisão de internamento e da decisão que o mantenha; e)
votar, nos termos da lei; f) enviar e receber correspondência; g) comunicar com a comissão que será criada para
acompanhamento da execução das normas relativas a internamento compulsivo.
11
Assim, os cuidados de saúde mental são promovidos, por equipas multidisciplinares e em meio o menos
restritivo possível, prioritariamente a nível da comunidade, por forma a evitar o afastamento do doente do seu
meio habitual e a facilitar a sua reabilitação e a sua reinserção social, devendo privilegiar-se estruturas
residenciais, centros de dia e unidades de treino e reinserção profissional, inseridos na comunidade e adaptados
ao grau específico da autonomia dos doentes.